O herói da cavalaria andante na Idade Média
Percival no castelo de Brancaflor
Percival cavalgou o
dia inteiro na floresta, solitário. Sentia-se muito mais à vontade doque se estivesse em campo aberto.
A noite caía quando
enxergou uma fortaleza, bem situada, mas fora dela só se via mar,água e
terra desolada.
Percival passou por
uma ponte toda bamba e bateu no portão.
Uma moça magra e
pálida apareceu à janela:
“Quem bate?”
“Um cavaleiro que
pede hospedagem para a noite.”
A moça desapareceu e
quatro homens de armas de aspecto miserável vieram abrir o portão.
Percival seguiu-os
pelas ruas desertas, ladeadas de casebres caindo aos pedaços. Nem moinho para moer, nem forno para assar. Nenhum sinal
de homem ou mulher, dois conventos
abandonados...
Chegaram ao palácio
com parapeito de ardósia. Um criado levou o cavalo a um estábulo sem trigo nem feno, com apenas um pouco de
palha... Outro conduziu Percival a uma
bonita sala onde dois homens de certa idade e ar debilitado foram ao seu
encontro.
Uma jovem os
acompanhava. Seus olhos eram sorridentes e claros, seus cabelos louros caíam como ouro fino sobre os ombros cobertos por um
manto de púrpura escura, ornado de pele
de esquilo e com as bordas de arminho. Nunca houve moça mais linda do que ela. Seu nome era Brancaflor.
Ela deu a mão a
Percival, levou-o para um grande quarto com o teto todo esculpido e pediu-lhe que se sentasse ao lado dela, na cama
coberto de brocado.
“Aceite nossa casa
tal como é. Não há fartura de nada, como verá. Temos apenas seis pães que o superior do convento, meu tio, me
mandou para a ceia desta noite. Não háoutro
alimento, salvo um cabrito selvagem que um dos meus soldados caçou esta manhã.”
Dito isso, ela
ordenou que pusessem as mesas. Todos se sentaram, e o jantar foi breve.
Percival foi se
deitar, ainda morto de fome. Mas os lençóis eram imaculadamente brancos, o travesseiro macio, as cobertas
ricas. Adormeceu. Foi acordado por um choro bem próximo do seu rosto. Surpreso, viu Brancaflor soluçando de
joelhos diante da cama, com um manto
curto de seda escarlate jogado em cima da camisola.
“O que houve, minha
bela? Por que veio aqui?”
“Não me julgue mal.
Estou desesperada. Faz um longo inverno e um longo verão que o senescal de Clamadeu das ilhas, o pérfido
Anguingeron, nos sitia. Sobram apenas cinquenta
cavaleiros dos trezentos que formavam a guarnição daqui. Os outros morreram ou estão presos. Nossas provisões, como
viu, se esgotaram. Não há nem obastante para o almoço de uma abelha!
Amanhã nos renderemos, e eu serei entregue com o castelo. Mas eles não vão me
pegar viva. Antes de me entregarem, eu me mato. Foi isso que vim lhe dizer.”
A espertinha sabia o
que estava fazendo. Nenhum cavaleiro seria capaz de ouvir indiferente tais
palavras. Percival exclamou:
“Enxugue suas
lágrimas, bela amiga. Vou defendê-la amanhã. Desafiarei o senescal Anguingueron para um combate singular e o
matarei!”
Na manhã seguinte,
pediu suas armas, vestiu-se, montou a cavalo e saiu do castelo.
Anguingueron estava
sentado diante da sua tenda, entre os sitiantes. Viu Percival se aproximar,
armou-se, pulou no cavalo e perguntou:
“Veio em busca de paz
ou de batalha?”
“Responda primeiro: o
que você veio fazer aqui? Matar os cavaleiros e devastar a terra?”
“Quero que o castelo
se renda, e quero a moça.”
“Ao diabo, você e
suas palavras!”
Percival abaixou a
lança e os dois adversários se precipitaram um contra o outro a toda velocidade
sobre seus cavalos. Foi um combate longo e furioso, mas o senescal acabou indo
ao chão. Gritava:
“Piedade! Poupe-me!
Não seja cruel!”
Percival lembrou-se
do conselho do bom Gornemant e hesitou.
“Se você tem um
senhor, mande-me a ele”, insistiu senescal. “Contarei a sua vitoria e
depositarei nas mãos dele minha sorte.”
“Então vá ver o rei
Artur. Cumprimente o rei por mim e peça que mostrem a você a moça que foi
esbofeteada por Keu por ter rido ao me ver. Entregue-se prisioneiro a ela e
diga-lhe que eu espero não morrer antes de vingá-la!”
Percival voltou ao
castelo sob as aclamações dos sitiados. E Brancaflor, desde então, amou-o.
(
Jaqueline Mirande. Contos e lendas da Távola Redonda. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo: Cia das Letras, 1998. P.47-53.)
Vocabulário:
Brocado: tecido de seda com
relevos de ouro e prata.
Combate singular: combate entre apenas
dois cavaleiros.
Escarlate: cor vermelha muito
viva
Hesitar: demonstrar dúvida,
incerteza.
Imaculado: que é puro, sem
manchas; de perfeita brancura.
Pérfido: desleal, traiçoeiro.
Sitiado: que está cercado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário